ESTADAO
05/09/2013 - 19h 24

Evaldo Mocarzel flagra a promíscua relação entre vida privada e sociedade do espetáculo'Fome de Notícia' é nova parceria do dramaturgo com o Teatro da Vertige


Maria Eugênia de Menezes
O Estado de S. Paulo
Eles vampirizam as tragédias da mídia para sublimar suas dores - Divulgação

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Eles vampirizam as tragédias da mídia para sublimar suas dores
A relação entre o dramaturgo Evaldo Mocarzel e o Teatro da Vertigem continua a gerar frutos. Depois de escrever Kastelo – que o grupo encenou em 2010 –, o autor agora assina Fome de Notícia. O espetáculo, que estreia hoje no Centro Cultural São Paulo (CCSP), tem direção de Maurício Perussi, encenador assistente da montagem Bom Retiro, 958 metros, que resolveu encenar o texto depois de apresentá-lo dentro de um Ciclo de Leituras Dramáticas do Teatro da Vertigem. “Antônio Araújo (diretor do Teatro da Vertigem) assistiu a essa primeira encenação da peça e nos incentivou a estrear”, conta Mocarzel. “Ele também nos deu uma contribuição importante, chamou a minha atenção para a ausência do meu depoimento pessoal como jornalista. O que está presente nessa versão que apresentamos agora.”
Além de dramaturgo e documentarista, Mocarzel teve uma longa carreira no jornalismo e foi, inclusive, editor do Caderno 2. Para concretizar sua intenção de amarrar desejo e morte em uma mesma obra, ele se valeu daquilo que viu e viveu por mais de 30 anos dentro das redações. “O jornalismo, no geral, é muito mal retratado. Surge sempre de uma maneira maniqueísta, estereotipada”, observa ele. “Todo esse tempo passado dentro do jornal decantou nos meus nervos, para o bem e para o mal. Aprendi a resolver qualquer problema em tempo recorde. Mas também estive em contato com um antro de cinismo – traço que os jornalistas exacerbam até como instinto de defesa.”
Em Fome de Notícia, a situação retratada é a de um homem e uma mulher que encobrem suas vidas com aquilo que veem e leem nos meios de comunicação. “É um casal de classe média paulistano que vampiriza as tragédias da mídia para sublimar o próprio vazio”, observa ele. “E eu conheço muita gente assim, que se alimenta diariamente dessas notícias de crimes. Existe uma camada pessoal que eu também quis exorcizar aí.”
Ainda que convoque muito de sua vivência e de sua capacidade de observação para a composição da peça, Mocarzel preferiu revesti-la de carga expressionista – traço estético, aliás, que surge de forma recorrente em suas criações, como Tragicomédia de Um Homem Misógino, Satyricon e Kastelo. “Tem um lado obscuro da alma humana que o expressionismo me ajuda a capturar muito bem, que eu encontro sempre que volto a certos filmes alemães, como Gabinete do Dr. Caligari. Estamos mostrando uma espécie de reality show macabro”, diz ele sobre o espetáculo, em que atuam João Attuy, Marco Biglia e Sofia Boito e no qual elementos da vida cotidiana se mesclam a objetos e referências dos noticiários e dos estúdios de televisão. Além do casal, aparece em cena a figura de um contrarregra.
A prática de explorar a dor alheia não é novidade. Mas os tempos digitais só exacerbaram esse processo. “O poder do discurso audiovisual só aumenta”, crê o dramaturgo que já rodou 23 filmes. “Essa obsessão em se filmar, em se fotografar o tempo inteiro, está provocando uma imensa revolução que não é apenas estética, é também uma revolução nos costumes.” Em tempos de sociedade do espetáculo, tudo se tornou mercadoria. Alimentado por essa lógica perversa, esse casal fictício planeja vender a morte do seu relacionamento amoroso como evento noticioso. “Eles seriam capazes de vender até o próprio suicídio para ser televisionado”, comenta Mocarzel.
Quem for assistir a Fome de Notícia deve ganhar um exemplar impresso do texto. O lançamento integra um projeto do CCSP, coordenado pelo crítico Kil Abreu, que prevê a publicação de textos inéditos de dramaturgos brasileiros. Essa é a segunda obra da iniciativa. Também já foi lançado Ensaio Sobre a Queda, texto de Carlos Canhameiro, dirigido por Marcelo Lazzaratto em janeiro deste ano. Curiosamente, a criação também embaralhava amor e morte. Tratava da trajetória de Dante, bibliotecário que, ao fim da vida, revê as escolhas que fez.